“Roustaing é a antítese de Kardec”

18/12/2019

Silvino Canuto de Abreu (1892/1980):

A presença do pesquisador espírita Paulo Henrique de Figueiredo no Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, no dia 3 de novembro, para o lançamento de seu livro "Autonomia - a história jamais contada do Espiritismo", permitiu conhecer melhor uma das figuras mais emblemáticas da história do espiritismo no Brasil: Silvino Canuto de Abreu, crítico vigoroso dos desvios patrocinados pela Federação Espírita Brasileira, desde que esta adotou a "extravagância religiosa" de Jean Baptiste Roustaing.<br>

A FEB e o Roustainguismo

A nova obra de Paulo Henrique, baseada em documentos que estão sendo recuperados do acervo deixado por Canuto de Abreu comprovando os desvios sofridos pelo espiritismo, após a desencarnação de Allan Kardec, traz à tona também importantes depoimentos do próprio Canuto. Num deles, "O Espiritismo e as religiões", Canuto comenta: "Por não querer seguir os preceitos de Kardec, é que a Diretoria da Federação Espírita Brasileira tem semeado de incoerências a doutrina, desorientando os grupos que se deixam embair por mistificações emanadas de falsas autoridades, aceitas de pronto sem maduro exame".

O roustainguimo - doutrina à margem do espiritismo, criada pelo contemporâneo de Kardec, Jean Baptiste Roustaing (1805/1879) -, é, segundo Canuto, uma "extravagância religiosa", uma "nova seita", que, embora "fulminada pelo mestre com argumentos irrefutáveis, ao vir à luz", foi entronizada no Brasil pela FEB com pretensões de "impingi-la ao resto do mundo como sendo a verdadeira doutrina (de Kardec)". Para ele, "de fato, Roustaing é a antítese de Kardec", tendo criado uma "hibridez do Espiritismo com a superstição e o sobrenatural", resultando daí, com a equivocada atuação da FEB, "um tecido de incongruências".

Para Canuto de Abreu, a FEB, ao adotar o roustainguismo, mesclou o espiritismo com uma "extravagância religiosa".

Espiritismo não é religião

"O erro de Bezerra de Menezes e de outros pioneiros da FEB, segundo Canuto, foi o de acharem que para ser espírita seria necessário ser devoto de Cristo." 

Para Canuto, "O Espiritismo entrou no Brasil por adesão de algumas inteligências corajosas", entre as quais cita Bezerra de Menezes, Dias da Cruz e Bittencourt Sampaio. Mas, acrescenta: "Infelizmente os hábitos devocionais, trazidos da Igreja por aqueles lidadores preponderaram na sua nova orientação, imprimindo-lhe uma feição cultural em desacordo com a Doutrina", e complementa: "Ao parecer deles (e tal foi o erro inicial) não se podia ser espírita sem ser forçosamente devoto de Cristo". Segundo Canuto, "nasceu daí a falsa concepção de um Espiritismo sectário", incapaz de despertar o interesse de pessoas originárias de outras tradições espiritualistas. Nos escritos só agora revelados do grande pesquisador da primeira metade do Século 20, Canuto advertia: "É tempo de pôr as coisas em seus devidos lugares", e, para tanto, recordava Kardec: "O Espiritismo não é em si mesmo uma religião, nem pretende substituir-se a nenhuma seita religiosa, respeita a todas". Concluiu afirmando, na mesma linha tantas vezes adotada por Allan Kardec: "O Espiritismo, em suma, é o campo neutro de todas as religiões". Estudioso e pesquisador profundo das ciências religiosas, dono de uma cultura invejável, formado que era em Farmácia, Medicina e Direito, conhecedor do grego, do latim, do aramaico e do hebraico, Canuto de Abreu, segundo descreve o novo livro de Paulo Henrique, tinha plena autoridade para identificar no espiritismo essa condição de situar-se como "campo neutro" de todas as religiões, sem se tornar uma delas.

nossa opinião

NOSSO TEMPO É AGORA

O projeto que hoje desenvolve a Fundação Espírita André Luiz, FEAL, ao qual Paulo Henrique de Figueiredo está integrado, revela que, após recolher um rico acervo de documentos e testemunhos, comprovando os tantos desvios da doutrina espírita, pós-Kardec, Canuto de Abreu, sentindo a responsabilidade que recaia sobre seus ombros, resolveu pedir a opinião do Espírito Emmanuel, guia de Francisco Cândido Xavier, sobre se convinha dar divulgação a tudo aquilo. À consulta, feita em fins da década de 50 do século passado, o jesuíta desencarnado respondeu negativamente. O movimento espírita, segundo o mentor de Chico, não estava preparado para assimilar a divulgação dos conflitos internos e das históricas e equivocadas ações de maus espíritas que levaram o espiritismo a, praticamente, desaparecer na Europa, ressurgindo no Brasil, sob formato bastante diferente da proposta original.

Pode haver alguma razoabilidade no temor demonstrado por Canuto e no conselho de Emmanuel no sentido do adiamento da divulgação das "Cartas de Kardec" (projeto ora em andamento), constituído de acervo histórico que buscará esclarecer sobre desvios éticos e doutrinários, surgidos nos primórdios do movimento espírita. No que diz respeito ao Brasil, sabidamente, o espiritismo aqui chegou sob um indisfarçável hibridismo cristão/evangélico que desnaturou sua proposta científico-filosófica. Pela ação propagandista de sua mais importante instituição pretensamente unificadora, gravíssimos erros doutrinários, presentes na obra de Roustaing "Os Quatro Evangelhos", foram divulgados, sob a adjetivação de "a revelação da revelação", um estágio superior, pois, ao kardecismo.

O ambiente de misticismo e de sectarismo aqui produzido criou condições inapropriadas a uma visão científico/filosófico/moral da proposta kardecista. Parafraseando o apóstolo Paulo, numa de suas cartas aos coríntios, até então, fora oferecido nada mais que o leite compatível com o frágil organismo infantil dos profitentes do "espiritismo/cristão/evangélico/roustainguista" e que haviam a ele chegado após longo estágio no catolicismo. Ofertar-lhes, repentinamente, o alimento sólido da filosofia de Kardec poderia, de fato, constituir-se em ação extemporânea e de difícil assimilação.

Mas, do tempo de Canuto para cá algo mudou. Felizmente, nas últimas três décadas, importantes segmentos espíritas brasileiros investiram significativamente numa releitura da obra kardeciana, liberta de interpretações - muitas, inclusive, de origem mediúnica -, que a associavam ao misticismo católico/evangélico, profundamente arraigado na alma popular brasileira, seja encarnada ou desencarnada. O estudo doutrinário sério, o intercâmbio igualmente sério e racional com a espiritualidade superior, a integração com outras áreas do conhecimento humano, a pesquisa histórica, terminaram por conferir maioridade e maturidade ao espiritismo brasileiro e mundial. Jamais vivemos um momento tão rico como este, exatamente pelo pluralismo de fontes e a independência de estudiosos e pesquisadores.

A hora, pois, é esta. Nunca é tarde. Para uma proposta de nítido caráter progressista e progressivo, a renovação é tarefa de todo o dia, incitando-nos, às vezes, inclusive, a recuperar o tempo perdido.

(A Redação)

Matéria coletada do Periódico CCEPA Opinião - Órgão do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre e as opiniões aqui expostas são do editor, cabendo a nós de livre vontade reproduzi-las.

Acesse para downloads esta e outras edições em ccepa-opiniao.blogspot.com

© 2019 Associação Espírita Allan Kardec - Suzano/SP | Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Webnode
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora